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Mariage coutumier: o casamento tradicional no Gabão


Hoje vou tratar de um tema complexo e com implicações sobre a questão de gênero, o mariage coutumier (casamento tradicional), bastante comum no Gabão e em diversos países africanos. A cerimônia terá particularidades mesmo dentro de um país, a depender da região e da etnia a que os noivos pertencem.

É sem dúvida um dos rituais mais interessantes e tradicionais da cultura gabonesa, mas, como é comum nas instituições sociais, tem suas controvérsias.


O grande dia


De quinta a domingo se você ouvir sirenes e ver comboios de carros escoltados pela polícia, lotados de pessoas (incluindo em cima de caminhonetes) vestindo as mesmas cores e em clima de comemoração, não tenha dúvidas: não é revolução, é casamento!



Os membros da família da noiva vestem-se com tecidos iguais, que combinam com o tecido da família do noivo.

O tecido ("pagne") é previamente definido e deixado em lojas de tecido da cidade com o nome dos noivos. Os convidados irão coser seus trajes com o tecido escolhido pelos noivos, no modelo que preferirem.

A maquiagem da noiva pode revelar suas origens ou ainda uma forma de se comunicar com o mundo dos espíritos. Por muito tempo eram feitas com carvão, argila e outras substâncias naturais.


 

O ritual

O ritual do casamento, na verdade, começa muito antes do grande dia, como nós bem sabemos. A primeira etapa é a apresentação do noivo aos pais da noiva e corresponde mais ou menos ao noivado. Neste primeiro encontro o noivo deverá levar presentes para a família da noiva, sendo dinheiro uma oferta bem vista.

Após cerca de 6 meses, é hora da cerimônia do casamento. A cerimônia acontece quase como um teatro conduzido por um orador (normalmente um tio mais velho da noiva), que irá iniciar a "discussão" do dote a ser pago pelo noivo.

Isso mesmo! O dote ainda é parte essencial na união, que se dá não apenas entre duas pessoas, mas entre duas famílias. A família da noiva irá exaltar as qualidades da moça e normalmente irá recusar as primeiras ofertas até chegarem no valor ideal - que já havia sido previamente combinado - e entregarem os demais objetos. 

Após este momento, as famílias se apresentam e inicia-se uma longa descrição da origem dos noivos e de seus antepassados, para verificar possíveis laços de sangue que inviabilizariam o casamento.


Dote negociado, presentes dados e antepassados esclarecidos entre as famílias, músicas e danças acompanham a entrada dos noivos. O orador faz a esperada pergunta à noiva, que, aceitando, receberá a aliança, uma joia e deverá se juntar à família do noivo, curvando-se perante seu sogro, que a partir de então será o seu novo pai.


E enfim começa a festa!

O dote

A composição do dote varia de uma etnia a outra e dependerá principalmente da situação econômica das famílias. Normalmente incluirá dinheiro e objetos como tecidos, panelas e bebidas, mas vale tudo! Hoje em dia anda comum incluir no dote TVs de tela plana e carros. 

O pagamento do dote representa o tamanho da perda que a moça representará para a família e todo investimento que nela foi feito durante sua formação. Serve também como uma forma de representação da obediência feminina ao homem. A aprovação do valor do dote pela família da noiva é crucial para que haja casamento. 

O dinheiro será divido entre os principais familiares da noiva (pai, mãe, avós, tios e irmãos). Ouve-se que a média do valor do dote é de 1 milhão de francos centro-africanos atualmente, cerca de 4 mil reais.

Um gabonês casando-se com uma estrangeira de cultura que não exija o dote está livre de pagá-lo. Caso uma gabonesa case com um estrangeiro, esse deverá realizar o ritual.

Se por algum motivo a mulher deixar o lar, seja por divórcio ou morte, antes de ter um filho, a família da noiva deve devolver o valor do dote ao marido.




Particularidades das relações familiares tradicionais
  • Do ponto de vista social, o casamento civil é menos importante que o casamento tradicional e o pagamento do dote.
  • O dote foi proibido pelo Código Civil em 1963, porém continua a fazer parte da sociedade, dos costumes e das relações humanas do Gabão. 
  • É possível que homem e mulher vivam juntos e tenham filhos antes da oficialização do dote, uma prática comum mas que não agrada as famílias.
  • O casamento civil é permitido para mulheres acima de 15 anos e homens acima dos 18 anos. 
  • A poligamia é legalmente aceita pelo Código Civil Gabonês, caso a primeira esposa também concorde. 
  • No Gabão, a poligamia é baseada em fatores econômicos, reprodutivos e políticos, não religiosos.
  • O homem poderá casar-se com mais de uma mulher, tanto no mesmo dia ou ao longo dos anos, tanto pela tradição quanto pelo direito civil do país. 
  • As famílias poligâmicas poderão viver na mesma casa ou em casas separadas.
  • O casamento poligâmico, no entanto, é uma opção, feita pela mulher na hora do casamento civil.
  • Quando a mulher opta pelo casamento monogâmico e o homem ainda assim casa com outra esposa, ela poderá processá-lo por bigamia, pedir a nulidade do segundo casamento ou o divórcio. 
  • Os filhos dos casais poligâmicos são criados pelo pai e por todas as suas esposas, sem distinção. Os filhos, no entanto, pertencem ao pai. 
  • O sexo não é proibido antes do casamento. Caso uma mulher solteira engravide de um homem já casado, o filho pertencerá, pela tradição, à família da mãe.
  • Antigamente a infertilidade era considerada causa legítima para a dissolução do casamento. 
  • Se uma mulher comete adultério e engravida, a criança vai pertencer ao marido que pagou o dote, caso ele assim o deseje, pela tradição. Se ainda não houve o pagamento do dote, a criança pertencerá ao pai ou ao irmão da mulher. 
  • Em caso de morte do marido, pagador do dote, a viúva pode ser dada como esposa para o irmão mais novo do falecido. Caso ela se case com outro, perde todos os direitos de herança.
  • A legislação também prevê a igualdade dos gêneros, mas a luta por fazer valer os direitos da mulher está no começo de um longo percurso. 


A complexidade das relações tradicionais e as discriminações de gênero dela decorrentes são foco de trabalho do governo do Gabão, da ONU e de diversas ONGs. 

O governo do país tem sido pró-ativo no tema, criando mecanismos de ajuda aos órfãos e viúvas e projetos de lei para a revisão de disposições do Código Civil e do Código da Segurança Social. 

A primeira-dama Sylvia Bongo Ondimba criou uma fundação com seu nome que luta pelo direito das viúvas e dos órfãos. Esse movimento transformou-se em uma das bandeiras do novo governo gabonês, do presidente Ali Bongo Ondimba, que levou à ONU a proposta, aceita após votação na Assembleia Geral em 2010, de transformar o dia 23 de junho no Dia Internacional da Viúva


Comentários

  1. Excelente texto, ter a oportunidade de observar as características culturais é um grande privilégio.

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    1. Observar e tentar entender tudo isso não é um processo rápido e certamente ainda não compreendi todos os detalhes, mas já começo a achar algumas respostas para o que vejo aqui no dia-a-dia e agora com menos pré-julgamentos. Uma inestimável experiência.

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  2. Adorei o post, Celina! Muito bem escrito e ilustrado! Não sabia quase nada sobre esse assunto e achei interessantíssimas as informações que você nos trouxe! Fiquei curiosa para saber se aqui no Benin também é assim...

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    1. Obrigada, Gabi! Acho que nosso tempo aqui na África vai deixar saudades e muitos aprendizados! Nossas experiências são muito parecidas e mesmo que estejamos em países diferentes, porém praticamente vizinhos, eu me sinto melhor por saber que não estou sozinha nessa! Um beijo pra vocês aí de cima! ;)

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  3. gostei muito de ter lido..aprendi mais

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